Considerar a Lei de Anistia como marco fundante de um pacto imutável contribui para sufocar a política e frear o processo histórico da transição.
Mauro de Azevedo Menezes e João Gabriel Pimentel Lopes
Na semana que marca os cinquenta anos do golpe instituinte da ditadura civil-militar no Brasil, é imprescindível refletir sobre a categoria da anistia concebida em decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal para considerar que, mesmo à luz da Constituição de 1988, a Lei nº 6.683/1979 vigora para impedir que os sequestros, desaparecimentos forçados, torturas e assassinatos praticados por agentes do regime venham a ser objeto de responsabilização judicial.
Não bastasse o reconhecido cometimento de graves violações aos direitos humanos, o regime de exceção logrou condicionar a transição política a uma lógica de esquecimento que dominou as décadas seguintes e constituiu parte de um legado autoritário paradoxalmente projetado para uma etapa histórica que deveria contemplar a plena restauração de direitos vilipendiados pela ditadura.
Os militares e civis responsáveis pelo cenário político instaurado entre 1964 e 1985 buscaram fazer vigorar o silêncio coletivo, sempre consolidando seus projetos de poder por meio da imposição de uma forma jurídica que lhes respaldasse, em que pese o grave rompimento institucional sobre o qual se erigiu o regime. A autoimunidade imposta por lei foi a tradução normativa da fixação de um futuro que interessava muito pouco a quem resistia ao presente. Semelhante tutela jurídica eterna de injustificáveis transgressões operadas por agentes do Estado jamais seria aceita livremente pelas vítimas da ditadura.
A anistia de 1979 foi um ponto culminante da propalada “abertura lenta, segura e gradual” e é hoje propagandeada por determinados atores políticos como um suposto pacto fundante da redemocratização. Foi essa visão que se buscou consignar por meio da decisão da ADPF nº 153. Decerto, a anistia concedida em 1979 representou uma significativa conquista na luta pela abertura política e pela restituição das liberdades democráticas. Convém frisar, no entanto, que sua promulgação aconteceu ainda sob os rigores de um regime de exceção. Assim, a postura que presume o caráter fundacional daquela anistia acaba servindo de correia de transmissão para tentativas espúrias de calar o passado.
Considerar a Lei de Anistia como marco fundante de um pacto imutável contribui para sufocar a política e frear o processo histórico de uma justiça de transição pelo uso da forma jurídica. Nada de novo, nem mesmo o método. Método exportado, reciclado e sofisticado nas ditaduras latinoamericanas, que não conseguiram mais que jogar água fria sobre as marcas de ferro quente, a tornar indistintas as relações públicas e privadas de posse de corpos, instituições e sonhos.
Na atualidade, a invocação contínua do caráter fundante da autoimunidade não é mais que expressão máxima de uma vontade de neutralizar e naturalizar o momento social então vivido. É como se fosse uma fundação mítica, que se pretende incontestável e busca se reproduzir na edição da emenda constitucional que convoca a nova ordem. Outra vez, o método fez um farsesco apelo ao signo do poder constituinte, que, 22 anos antes, fora usado para inovar juridicamente pela espúria forma do ato institucional.
A estratégia, já tão conhecida por quem se submetera durante séculos à espada de lâmina fria da norma jurídica, consiste em reduzir o que não se admite operar pelo embate ou pela aproximação a uma mera prescrição jurídica. Sucede que a história não se faz de certezas, tampouco de enunciações. Ela vive e pulsa, constitui-se como luta, na política cotidiana e presente de operação da vida.
A mirada para a história é também um embate a respeito da vida que acontece agora como política. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 153, no entanto, preconiza uma tortuosa neutralidade histórica, ao reproduzir uma lógica da fundação acima da crítica, que se opera no tempo sem que se afirme sua própria temporalidade, sua própria sindicabilidade.
A busca atual pela re-visão da anistia se desenvolve pelas lentes limitadas e determinantes da atualidade, mas invoca uma pretensão universalizável de enfrentamento político. Hoje, o sentido dessa operação é repolitizar, mais de 25 anos depois, a Constituição de 1988. Trazê-la de volta à realidade política e inscrevê-la na história do passado como o presente das disputas entre distintos projetos de poder.
Ao julgar a ADPF Nº 153, o STF optou pelo caminho da autorreferência. Protegeu uma versão da história, tornando sem vida e sem sabor o que restou do passado. Escolheu ver um tempo que se desenvolve como mera sucessão de fatos, a se vincularem uns aos outros tão somente pela posição cronológica que se pretende inevitável. Enxergar o tempo dessa maneira implica considerar as rupturas infindáveis, traduzidas na loucura da intertemporalidade, como se fossem uma mera continuidade sem acontecimentos.
Toda ruptura carrega em si a virulência da mudança, o enfrentamento de visões de mundo e a violência das disputas de poder. Carrega a dor provocada pela intersecção paradoxal entre o que não é mais e o que constrói o agora. A dolorosa gestação do presente democrático no Brasil exige uma religação com o passado, por meio do olhar sobre os corpos que sumiram, sobre os projetos que se esvaíram, sobre os laços que se romperam, sobre as integridades torturadas.
Rever a anistia é dizer que desapareceram com os corpos, que esvaíram os projetos, que romperam os laços, que torturaram integridades. É, numa figura kafkiana, repelir as leis que se impuseram na carne viva mediante o ainda estridente movimento das agulhas afiadas do autoritarismo. É identificar, entre os operadores do poder, os comandos e os comandantes da antiética do terror. É romper o ciclo do direito como agente da opressão, por meio da desobediência aos mitos fundadores e às crenças promotoras de inflexão, em prol do novo direito que há de surgir no processo histórico.
Afinal, o direito é processo, escrito no tempo presente que constitui a vida. Para falar da ditadura, não deve ser necessário tê-la sofrido. Que se contem as histórias, revisitem-se os dramas, ressuscite-se a política. Resistir ainda é preciso.
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153. Emenda Constitucional nº 26/1985.
Não custa lembrar que foi justamente a figura do poder constituinte a categoria jurídica invocada para legitimar a edição dos atos institucionais, como deixa explícito a mensagem que prefacia o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular”.
________
Mauro de Azevedo Menezes é advogado de anistiados políticos. Membro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco.
João Gabriel Pimentel Lopes é advogado. Pesquisador em Justiça de Transição e Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: CARTA MAIOR